Crônica para Soia Lira

Ao tempo que leio uma crônica interessante de Carlos Aranha sobre o fazer teatro nos tempos de hoje, lembro de espetáculos como “Vau da Sarapalha”, que assisti umas três vezes. Sempre com o mesmo encantamento. Desse encantamento, surgiu, uma vez, uma crônica para Nega Ceiça da peça, nossa Soia Lira. Segue:

Soia, quando você está no palco interpretando a Nega Ceiça, de Vau da Sarapalha, consegue nos transportar para um tempo que não quer morrer.

Impossível não lembrar de minha querida Mãe Guedinha quando você passa transportando o fogão de lenha de um lado ao outro do palco. E quando você dá milho às galinhas? Ah, no Sítio Sossego vi tanto isso! Minha vó, com seus caqueados, suas manias. Era mais vaidosa que você, Soia. Gostava de se maquiar, mesmo às vésperas dos sessenta anos. Mas você lembra também outra vó. Esta apenas vó. E cega. Que tinha os cacoetes dela e eu e o mano Lenilson cuidava desses cacoetes como se fossem heranças. Como se fossem botijas de ouro que não podíamos perder. No entanto, perdemos as duas vós. Mas você, não, Soia.

Você passeia no palco. Você brilha no palco. Claro, que em parceria com um elenco maravilhoso, com uma direção perfeita, uma percussão arrepiante. Mas você paira acima do bem e do mal na peça. Você está acima dos ciúmes bobos dos primos Argemiro e Ribeiro. Você, em tese, complementa a cena com o cachorro Jiló, na magistral interpretação de Servilho (aliás, como não lembrar de Papai Né, meu avó, e seu cachorro, quando Jiló está no palco?). Mas isso só em tese. Você, na verdade, é a própria cena, Soia.

Você traz para o presente uma realidade que por mais que esqueçamos está guardada nos mais recônditos rincões de nossa alma já castigada, não pela seca do sertão, mas pela agonia das metrópoles e a busca pela sobrevivência.

E incrível como isso acontece com um personagem que quase não existe no conto de Guimarães Rosa! Incrível como você, Soia, consegue criar no palco um personagem quase anônimo. Um personagem que é apenas uma referência no conto e que vira um personagem-referência na peça. Sem ele, sem a nega Ceiça, talvez a gente nem desse trela para as lamúrias dos primos que Everaldo Pontes e Nanego Lira interpretam, sempre reclamando de malárias e matando mosquitos que nem existem. E preocupados com as coisas da vida comum que a gente inevitavelmente se preocupa, como ciúme e o medo de ficar sozinho.

Nega Ceiça não tem disso não. Aliás, Soia Lira está acima dessas preocupações cotidianas que só fazem estressar nossos corações cheios de dúvidas e dissimulações (no melhor estilo machadiano) e nossos pulmões já quase enfartados.

Em cena, só se preocupa com o cotidiano que importa. Preparar a comida, dar milho às galinhas, tanger o cachorro, levar lenha para o fogo e cantar, a canção maravilhosa que veio do Sertão das Gerais, mas que se adapta tão bem aos nossos sertões nordestinos.

“Eu vou rodando

Rio-abaixo, Sinhá

Eu vou rodando

Rio-abaixo, Sinhá…”.

Benção, Sinhá Soia.


Linaldo Guedes

Jornalista e poeta. Nascido em Cajazeiras, no Sertão da Paraíba. Radicado em João Pessoa desde 1979. Como poeta, lançou os livros “Os zumbis também escutam blues e outros poemas” (A União/Texto Arte Editora, 1998), “Intervalo Lírico” (Editora Dinâmica, 2005), “Metáforas para um duelo no Sertão” (Editora Patuá, 2012) e “Tara e outros Otimismos” (Editora Patuá, 2016). Lançou, em 2015, “Receitas de como se tornar um bom escritor”, pela Chiado Editora, de Portugal.

Tem textos e poemas publicados em dezenas de livros lançados no Brasil, incluindo antologias. Sua produção literária e fortuna crítica podem ser acessadas nos seguintes blogues:

Site: https://conversandosobrelinaldoguedes.wordpress.com/

Site: https://linaldoguedes.wordpress.com/

E-mail: linaldo.guedes@gmail.com

One thought on “Crônica para Soia Lira

  • 15 de outubro de 2017 em 22:52
    Permalink

    Magistral texto de Linaldo, sobre um espetáculo e uma atriz magistrais!
    Também fiquei encantada com Vau da Sarapalha, a que assisti três vezes também e assistiria outras tantas, se voltasse a ser encenada.

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