O texto como teatro do mundo em Versos no camarim, de Regina Celi

Por Alexandra Vieira de Almeida

Heidegger afirmou que “a linguagem é a morada do ser”. Regina Celi reafirma esta máxima, dizendo que a linguagem é a morada do ser no mundo. Esta relação é ambígua e conflitante e é dramatizada pela poesia no livro de poemas Versos no camarim (Penalux, 2018) desta poeta instigante. Aqui, o mundo seria o leitimotiv para a linguagem acontecer ou seria o contrário? Como o próprio título aponta, a linguagem é um palco, é uma encenação-representação do mundo, mas que só é possível pela mediação do ser que se reconstrói a partir do eu-lírico. O texto como teatro ou palco do mundo encena uma trajetória de possibilidades poéticas na pena formidável de Regina Celi. A vida acende a chama do verbo e torna plausível a íntima relação mediada pelo fogo dos versos ricos em beleza e delicadeza. A referência é a relação entre a linguagem e o real. Às vezes, eles se distanciam, outras vezes, eles apelam para a distância inapelável entre estes planos ambíguos e complexos, mas, que desencadeiam a aurora do poético em máxima potência.

Wittgenstein dizia que “Sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar”. A poesia de Regina Celi fala através dos espaços das entrelinhas, onde se dão o silêncio e o vazio da espera, daquilo que encena o vão entre linguagem e realidade, entre o ser e o mundo, mas também suas continuidades e alongamentos. Estes dois filósofos são referenciados na poesia de Regina Celi, mostrando seu processo de diálogo e intertextualidade, com o apelo à tradição filosófica. Por isto, sua poesia vai além da emoção e deságua no processo intelectivo do viés criativo.

Foto: Divulgação

O livro é dividido em quatro partes, como se este quaternário formasse o plano material da concretude do mundo e da carnalidade da linguagem que constrói o ser: “Quando as palavras me vestem em linguagem”, “No camarim, o mundo se despe em palavras”, “Do camarim, as palavras vestem os mundos” e “Na magia do camarim, o mundo se encanta em poema”. Na belíssima e contundente apresentação da Professora Titular de Linguística pela UFPE, Virgínia Leal, esta diz: “E foi a partir destas fissuras que passei a pensar no gesto de escrit (ur) a e na espécie de camarim que guarda e aguarda a performance de uma poeta: essa que se despe enquanto veste os ver (s) os que produz.”

Na epígrafe da primeira parte do livro temos uma passagem de Macbeth, de Shakespeare, que disse: “Não existe arte que ensine a ler no rosto as feições da alma”. É nas palavras e nos gestos e não na fisionomia, que Regina Celi busca o sentido. Ler o que está oculto na face, a fisionomia, era algo muito importante entre os pitagóricos. Mas ler a fisionomia do mundo, o real como uma representação da linguagem é o que a obra poética desta autora original requer. No poema que abre o seu livro, “Tributo a Wittgenstein”, Regina Celi diz: “visto o mundo/com os olhos/de minhas palavras//o mundo que dispo/não é o que te veste…” Aqui, temos a afirmação deste apelo entre o eu-lírico e o mundo, criando-se, assim, a ponte e a muralha com que se tecem a camada dos significados. A percepção mundo-realidade e linguagem é tecida numa urdidura rica e cambiável, tornando os dois elementos móveis e flutuantes como o íntimo do ser.

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Sua poesia é ricamente metalinguística, pois este tipo de poesia é o ideal para se falar do entrecruzamento entre os versos e o palco do mundo. Na metalinguagem estão escondidas faces que extrapolam o texto para atingir a nervura do mundo, o centro de sua atividade.

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Angelus Silesius disse que “Bem-aventurado silêncio. Feliz o homem que nada sabe e nada quer”. O silêncio, em Regina Celi, é tomado pela força da poesia, sua criação e geração de sentido além dos sentidos limitadores. No poema “Cinzel”, temos: “a poesia não acontece/na hora da estrela//o tempo vem/a cada golpe do cinzel:/de talho/em talho/a palavra/escultura/o poema.” Aqui temos a negação da postura facilitadora de que o poema surge a partir de uma inspiração luminosa.

Utilizando-se da intertextualidade de Clarice Lispector e, aqui, neste livro, encontramos também várias referências literárias; Regina Celi nega a máxima platônica de que a poesia surge por inspiração. Platão evocou no seu livro Ìon de que o poeta era tomado por um deus ou gênio. A inspiração não é um devaneio repentino de imagens a irromper de forma fulminante no poeta. Para Regina Celi, é um trabalho árduo, de esculpir com esmero e tempo seu produto final. É todo um processo de muito talhar os versos com grande força e potência intelectiva. Paul Valéry, no texto “Poesia e Pensamento abstrato” já afirmava sobre o processo difícil de se produzir o texto literário com tempo e reflexão. Regina Celi reúne em sua poesia a subjetividade e a abstração filosófica. O nascimento do poema se traduz no duelo entre a luz e a sombra, do racional e do irracional, do intelectivo e do emotivo.

Além destas oposições, a poeta Regina Celi, nos seus versos, aproxima-se do barroco da expressão, pois se utiliza de jogos de palavras e também de jogos conceituais na sua performance poética. Vejamos o poema “Evocações a Heidegger”: “a adâmica [e eterna] busca da melhor palavra/tropeça num limbo conceitual//as palavras são errantes/mas nunca erram//erramos nós/por desejá-las perfeitas.” Além desta encenação conceito/palavra para revirar, regenerar e reconstruir o mundo que vagueia de forma incerta e imprecisa, em alguns poemas, Regina Celi representa a função social da poesia, não como função monetária, mas como percepção de um ser perplexo em meio ao mundo fantasmático em que vivemos com suas dores e doses de nostalgia e crueldade: “poesia é anarquista/não se vende por trocado”.

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A força libertadora da poesia não se apazigua em moedas fáceis, encerra uma potência de revolucionar o mundo e os seres com sua linguagem inovadora e original.

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A poesia também preenche uma falta, aquilo que é ausência e vazio. É um preenchimento do desvio do que é vácuo, do silêncio da palavra. Os olhos dizem os mistérios do ser. O sentido das coisas é um apelo dos olhos, fonte do conhecimento e da quadratura do mundo físico que se arredonda na abstração do intelecto: Em “Meus olhos”, temos: “meus olhos,/janelas de mim/minhas impressões digitais”. É preciso “enraizar-se” para se aprofundar na leitura do mundo. A relação ser/mundo mostra como se introduz o ser na realidade pela poesia. O eu e sua representação no real pairam sobre o chão. É na concretude da realidade que se traduz os mais abstratos sentidos. A grafia do mundo é inscrita no desenho das palavras. O real é espelho e pintura dos versos: “não escrevo poema/desenho com palavras”. Aqui temos a figuração horaciana da “Ut pictura poiesis”, ou seja, “A poesia como pintura”. E finaliza o poema: “quase um Monet.” Em “Psique e croissants”, temos a seguinte questão: como traduzir o mundo pela linguagem que é pura abstração? No próprio título do poema, encontramos o enigma dos paradoxos entre a abstração do intelecto e a concretude do mundo. Aquela está no espaço da linguagem, mas Regina Celi traz intercâmbios entre os dois, revelando que na concretude do mundo está a percepção do ser que faz da realidade algo impalpável como o voo longínquo dos pássaros.

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A poesia de Regian Celi é capaz de fazer esta ponte entre linguagem e o mundo, concretizando pela pintura, pelo desenho, a visualidade dele. Sua poesia é visual. Como escapar do trajeto enganador das palavras que poderiam distorcer o real ao seu bel prazer?

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Regina Celi traz a cura para esta “miopia linguística”, o vão entre o ser e o mundo é preenchido de sentidos plenos e transparentes, transfigurando toda opacidade a partir das lentes dos versos. A poesia como palco do mundo reescreve pelos olhos das palavras a falta que cabe à linguagem. Como Ferreira Gullar, confrontar-se com as palavras é uma “luta corporal”. Somos frutos da linguagem, só somos humanos enquanto escrevemos e falamos, a “humanidade linguística” é o que se acrescenta na poesia, por seu acúmulo e excesso. A identidade de uma língua se cria por negação da outra face, o espelho se inverte e produz o outro, no palco da vida, como podemos ver em Babel (icos): “Naquele dia/todas as línguas/se elevaram em coro//[quíchua, maori, tupi, mandarim/aramaico, latim]//Naquele dia/em todas falas/uma só prece://Não mais!/Não mais!/Não mais!”. O autoconhecimento se dá pela poesia que revela esta descoberta do ser pela palavra inaudita. A poesia despe a realidade, desnuda-lhe a roupagem cênica e dá-lhe o sentido; a linguagem das palavras regenera o mundo com a imprecisão dos versos indizíveis. A poesia dedilha o mundo com delicadeza e humanidade: “o ser redescobre-se humano/ao aceitar a entropia/e a imprecisão da poesia.”

Finalizando, no último poema do livro, temos: “imune ao tema,/o universo/cabe num poema.” O texto poético é responsável por traduzir a multiplicidade do universo, pois do mínimo se pode traduzir o que é plural e antagônico, o que é imenso e transbordante. A poesia dá os limites ao que é ilimitado e infinito. O poema encapsula o universo nos versos plenos e dignificantes de Regina Celi. Com precisão e ótima elaboração da poeticidade, esta poeta tira a opacidade do mundo com a força cristalina das palavras imprecisas, eis o paradoxo. Sua poesia é mágica e representativa da linguagem como espaço de criação da realidade com grande beleza e sinceridade. A sua poesia necessária se faz presente em versos curtos e cortantes como a adaga do silêncio e da reconstrução deste mesmo vazio pelas palavras. Como encenação de uma realidade, seus versos dramatizam o mundo com seus véus de pertencimento aos mistérios da vida que se traduzem em um livro de poemas que reencena a relação ser-linguagem-mundo num apelo surpreendente que só é possível pelo gênero lírico que é capaz de revelar o que os olhos veem como urdidura de um quadro inusitado e preciso como o corte da lâmina. Apesar da “aparente” imprecisão com que identificamos a poesia, ela se faz presente aqui por desocultar as roupagens obscuras e revelar a claridade límpida das manhãs.

Que sua poesia acorde nos leitores novos sentidos e amanheça no mundo palavras que traduzam o ser em comunhão com o real.


Versos no camarim”, minicontos. Autora: Regina Celi. Editora Penalux, 82 págs., R$ 36,00, 2019.

Disponível em:

https://www.editorapenalux.com.br/loja/versos-no-camarim

E-mail: vendas@editorapenalux.com.br


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Doutora em Literatura Comparada pela UERJ. Também é poeta, contista, cronista, crítica literária e ensaísta. Publicou os primeiros livros de poemas em 2011, pela editora Multifoco: “40 poemas” e “Painel”. “Oferta” é seu terceiro livro de poemas, pela editora Scortecci. Ganhou alguns prêmios literários. Publica suas poesias em revistas, jornais e alternativos por todo o Brasil. Em 2016 publicou o livro “Dormindo no Verbo”, pela Editora Penalux.

E-mail: alealmeida76@gmail.com

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