Ribeirinhos da Amazônia vão estudar história com vestígios arqueológicos das comunidades onde vivem

Pesquisadores apresentaram às comunidades ribeirinhas plano de conteúdo didático sobre arqueologia

À primeira vista, os cacos espalhados pelos caminhos de terra da comunidade Boa Esperança não passam de amontoados de pedaços de tijolos soterrados. Sob o olhar atento é possível perceber os formatos arredondados e, em algumas, até as decorações do que são, em realidade, conjuntos de urnas funerárias indígenas.

Os artefatos são numerosos e estão distribuídos pelas passagens e quintais das casas da comunidade, localizada da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Amanã, na região do Médio Solimões, Amazônia Central. Lá os vestígios arqueológicos não se limitam às urnas.

Em uma partida de futebol, um jovem pisou e sentiu quebrar a boca de uma garrafa de cerâmica com os dizeres “Wynand Fockink Amsterdam”, marca de rum amplamente comercializada na Europa na época da colonização.

De tempos em tempos, comunitários também encontram peças de artesanatos pré-colombianos, símbolos de uma história ainda desconhecida do lugar onde hoje vivem e criam seus filhos.

Foto: Maurício Silva ” Instituto Mamirauá

As comunidades ribeirinhas da Amazônia têm contato cotidiano com peças de datações milenares: vivem sob sítios arqueológicos. Nove urnas funerárias de aproximadamente 500 anos foram encontradas na comunidade Tauary, localizada na Floresta Nacional de Tefé (Flona) nos anos de 2014 e 2018. Atualmente, as urnas estão sendo analisadas pela Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), em Santarém, no Pará.

Em meio às descobertas, pesquisadores do Instituto Mamirauá e de instituições parceiras deram início à preparação de um material didático para uso nas escolas comunitárias. O principal objetivo do projeto é contribuir com a educação dos ribeirinhos usando os artefatos arqueológicos encontrados nas próprias comunidades.

Arqueologia em sala de aula

Em 2017, professores do Polo Educacional do Boa Esperança, que abarca diferentes comunidades da Reserva Amanã, se reuniram com os pesquisadores e ressaltaram o interesse em utilizar os achados arqueológicos das comunidades como ferramentas educativas nas salas de aula.

“Eles reclamam que sabem mais sobre a Roma Antiga do que sobre a Amazônia Antiga. A ideia é a gente trazer essa informação para eles”, explica o líder do Grupo de Pesquisa em Arqueologia do Instituto Mamirauá, Eduardo Kazuo. Em 2018, professores da comunidade Tauary apresentaram a mesma demanda, levando o projeto também à comunidade da Flona.

“Com isso, a gente pensou na produção de um material que pudesse ser usado pelas comunidades. Fizemos trabalhos com professores e levantamos as demandas das escolas sobre como seria essa contribuição”, conta o pesquisador do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da Universidade de São Paulo (USP), Maurício Silva, um dos organizadores do conteúdo.

A ideia reuniu pesquisadores de diferentes áreas da arqueologia – botânica, funerária, de cerâmica, patrimonial e de pessoas – que, juntos, deram início à elaboração do material.

Os cientistas envolvidos são do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da Universidade de São Paulo (USP), do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA) e do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (IDSM), organização social fomentada pelo Ministério de Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC).

Primeiro esboço do conteúdo didático

Em março deste ano, parte da equipe retornou às comunidades Tauary e Boa Esperança para atualizar os comunitários sobre andamento das pesquisas e também para apresentar o primeiro esboço do conteúdo didático.

“Fomos validar o que fizemos. Mostramos o que já temos para ver se esse conteúdo faz sentido para as comunidades, se eles dialogam e também para levantar o que ainda falta”, explica Maurício. “Os textos foram entregues, cada um leu e fez algumas observações de temáticas a serem inclusas. Esse retorno já foi repassado aos pesquisadores responsáveis para reformulação do material”, completa a pesquisadora Mariana Cassino, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA).

Na comunidade Boa Esperança, os pesquisadores também realizaram apresentação para crianças sobre arqueologia, atividade com alunos do Educação de Jovens e Adultos (EJA) e reunião com jovens comunitários sobre ações para a conservação do patrimônio arqueológico.

Conservação dos achados arqueológicos

Foto: Maurício Silva | Instituto Mamirauá

Uma das grandes preocupações no meio científico é em relação à conservação dos artefatos arqueológicos dessas comunidades ribeirinhas.

De acordo com Kazuo, a conservação das urnas funerárias da comunidade Boa Esperança, por exemplo, é realizada in situ – ou seja, os artefatos não são retirados dos locais. Os desafios, entretanto, são muitos. O arqueólogo explica que não existe método reconhecido de conservação desses objetos na Amazônia. “Existem em outros lugares, mas não aqui. Então falta a gente conhecer uma nova metodologia”, diz. 

Além disso a preservação também depende dos comunitários. Uma técnica que pode ajudar é a plantação de grama ao redor das peças. “Mas isso esbarra numa questão cultural – muitos comunitários não gostam de ter grama em volta das casas porque atrai animais indesejados”, comenta. Por isso a importância do diálogo entre comunitários e a comunidade científica para desenvolvimento de novas soluções.

Desafios

“Esses contextos das comunidades ribeirinhas colocam uma série de desafios. A gente transforma o quintal das pessoas em sítios arqueológicos. Mas antes de serem sítios arqueológicos, são espaços da comunidade. Então, a gente tem que pensar em que medida nosso conhecimento e nossa prática na arqueologia interagem com essas práticas locais”, explica Maurício, que realiza pesquisa de doutorado na área de arqueologia pública. A linha busca entender a relação das pessoas do presente com os vestígios arqueológicos.

Os estudantes não estudarão apenas restos de cerâmicas indígenas. O plano educativo também abordará outras áreas da arqueologia, como a arqueobotânica.

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Arqueologia não é só o que está debaixo da terra, é também o que está em cima.’

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Os pés de açaí, cupuaçu, mandioca e de outras tantas espécies vegetais cultivadas pelas comunidades ribeirinhas não são apenas cultura e garantia de sobrevivência dos povos amazônicos – são, também, elementos vivos que contam parte da história do lugar antes da chegada de quem hoje o ocupa.

A pesquisadora Mariana Cassino é especialista em arqueobotânica, área que analisa vestígios botânicos capazes de mostrar como era realizado o manejo das culturas agrícolas do local.

A arqueóloga está elaborando a tese de doutorado que investiga como a paisagem dessas comunidades foi transformada ao longo do tempo. “Meu trabalho busca entender como as pessoas que estão hoje nesses sítios arqueológicos se relacionam com essas plantas e a partir disso, pensar como essa paisagem vegetal foi construída. Desde um passado pré-colonial até o presente, como essas populações dão continuidade a essas práticas”, explica.

Diálogo entre passado e presente

Os comunitários demonstraram maior interesse pela arqueologia ao perceberem que a área, além de cacos e urnas, também estuda algo diretamente relacionado à vida deles: as plantas. “Vimos que os vegetais são um meio de diálogo entre passado e presente. Afinal, arqueologia também é o açaí consumido e a macaxeira cultivada. Não é só o que está embaixo da terra, é também o que está em cima. A minha contribuição com esse material educativo é nesse sentido”, aponta.

Já a pesquisadora Rubana Palhares investiga a história do Piquiá (Caryocar villosum), fruto altamente apreciado na região amazônica. Através da análise genética da espécie, é possível descobrir o lugar de origem e como se deu processo de domesticação da planta até que ela se tornasse parte do cotidiano dessas comunidades.


Com informações: Portal Amazônia / Instituto Mamirauá

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